quinta-feira, maio 16, 2013

Dentro da sua mente



O soldado caminha pela mata. Posso sentir até o cheiro da floresta tropical. Terra e grama molhada, como quando meu pai cuidava do jardim. Ouço o ruído quase imperceptível de seus passos. Sinto a sua apreensão. Um inimigo pode surgir de qualquer lado. A sua visão periférica registra cada movimento suspeito das folhas. Pelo que eu percebo ele sabe diferenciar o movimento natural do vento e dos animais do dos humanos, por mais que os inimigos procurem os imitar.

Será que ele tem algum sentimento além do estado de alerta? Percebo que ele não tem medo, mas deseja sobreviver. Como todos nós. Quase todos. Lembrei-me dos suicidas. Mas mesmo neles há ainda um fiapo de vontade de viver onde um bom negociador pode se agarrar e evitar a morte.

Na semana passada, eu fui um negociador. E fui também o suicida que ele devia salvar. Normalmente eles não permitem trocar de mente na mesma seção, mas eu obtive esta permissão com muito custo. Influência, troca de favores e dinheiro. Descobri que a permissão não passava de um papel escrito e que uma vez na mente de alguém, eu saía do controle deles. O manual de instruções, cheio de pode e não pode, era uma ficção. Mas não vou deixar que eles percebam que eu descobri isso. Se não eles não permitiriam que eu estivesse aqui hoje. Principalmente pelo que pretendo fazer.

Percebo que eu estou dispersando e deixo de prestar atenção no meu soldado. Meu? Sim. Sem questionamentos filosóficos por favor. No momento ele é meu veículo. Mas ele também é o motorista dele. Sou apenas um passageiro a espera de algo diferente. Do que vim buscar aqui.

Eu quero experimentar a morte. Não, isso não é proibido. Muita gente faz isso. Basta assinar um termo de responsabilidade para tirar o deles da reta. Foi por isso que escolhi o suicida. Queria sentir a sua queda ao pular do edifício e o encontro com a morte logo em seguida. Mas também queira sentir o que as testemunhas, ávidas por sangue, pesavam. Os familiares do suicida. E o negociador. Pena que ele era muito bom.

Não sei por quanto tempo ele andará pela mata em busca de seu objetivo. Nem de que lado da guerra ele está. Procuro perceber através do olhos dele alguma coisa em seu uniforme que permita reconhecer pelo menos se ele é um dos nossos ou do inimigo. Nada. Ri desta dúvida. É claro que é um dos nossos, do contrário nosso governo teria uma arma poderosíssima, permitindo olhar dentro da mente dos generais inimigos e logo ganharíamos a guerra.

Lembrei-me do negociador. E do suicida. E das informações privilegiadas. O negociador talvez não fosse tão bom assim. Ele podia ter entrado na mente do suicida antes, conhecido suas motivações e apertado os botões certos. Eu estive na mente dele. Parecia que ele seguia um roteiro.

Eu quero experimentar a morte. Pedi um soldado na linha de frente, com grande possibilidades de morrer. Talvez por isso é provável que eu esteja na pele de um inimigo. Para todos nós, nossos soldados não morrem. Quem morre são os outros. Escondemos as lágrimas das mães, filhos e viúvas.

Voltei a pensar nas informações privilegiadas. O governo e seus cidadãos. É desejo de todo governo manter controle sobre seus cidadãos. Se não podemos vigiar o inimigo, podemos vigiar a nós mesmos. Melhor, alguns de nós podem vigiar outros de nós.

Estou dispersando de novo. Não quero pensar sobre isso agora, do contrário não aproveitarei minha experiência. Mas meu soldado só anda e não disparou um tiro sequer. Talvez eu devesse ir mais fundo na mente dele. Um dos “não pode”. Saí da superfície e desci um pouco mais. Seus pensamentos periféricos, além da preocupação com a sobrevida. Talvez descubra de que lado ele está.

Na guerra, além das facções, há uma outra divisão: vítimas e heróis. A qual deles será que ele fará parte? Me parece mesquinho pensar apenas em usufruir de uma experiência de um soldado em vez de me preocupar com a luta e seu resultado para o meu país. Foda-se. Um amigo me disse que mantinham a guerra por razões econômicas e para dar um circo para o povo. Ninguém mais acreditava no futebol. O povo cansou das armações e do teatro. Na guerra, pensamos, o interesse do país é ganhar e, portanto sem manipulações. Ledo engano, dizia meu amigo. O nosso governo manipula os resultados. O que o nosso inimigo também faz. Eu acreditei nele. Daí não faz sentido pesquisar a mente dos generais em busca de estratégias de vitória. Estamos jogando para empatar.

Eu sabia que não devia me distrair. Enquanto fiquei filosofando, não percebi que o soldado conseguira chegar uma estrada e caminhava em direção às luzes de uma cidade. Achei um pouco estranho. Pela quantidade de luzes que ele via adiante, a cidade era relativamente grande. Mas, por que a surpresa? Vivíamos em cidades fortificadas, encravadas em locais improváveis. Desertos, ilhas, montanhas e, também, matas tropicais.

Meu soldado ainda está caminhado. Começo as sentir seu cansaço e também sua determinação em alcançar um objetivo. Talvez seu quartel, o mais provável, já que passara facilmente pela entrada fortificada da cidade. Se assim for, eu pedirei o meu dinheiro de volta. Prefiro pensar que ele é corajoso ou burro e seu destino, uma fortificação inimiga que ele quer destruir sozinho. Seus companheiros? Talvez mortos em emboscadas e ele deseje cegamente uma vingança. Improvável. Devo ter visto muitos filmes de ação estrelados por brutucus. Percebo apenas determinação. Estará apenas executando cegamente uma ordem? Se ele quer tanto chegar a seu destino, por que diabos ele não pede uma carona aos carros que buzinam pra ele no meio da rua?

Um soldado em trajes de campanha no meio da rua foge muito à normalidade, mesmo em tempo de guerra, mas as pessoas não percebem o absurdo. Apenas buzinam pra ele dar passagem e sair do caminho. Têm pressa em voltar pra casa pra dormir e no dia seguinte ir mais um dia morno em seus empregos e nem vão lembrar disso. Um bando de carneiros dominados.

Isso me fez retomar minhas conjeturas sobre o do governo e sua relação com esta tecnologia. Ele deve usá-la para monitorar uma parte da população, lendo seus pensamentos. Alguns cidadãos influentes em seu meio. Ricos, famosos e formadores de opinião. Talvez eu seja um deles. Estariam eles me seguindo agora, monitorando meus pensamentos? Talvez monitorassem também meu monitor. E o monitor de meu monitor. Um fractal imenso de controle até chegar ao presidente, que seria monitorado pela eminência parda.

Meu soldado consegue visualizar o prédio. Ele está perto de seu destino. Não é um quartel. É um prédio comercial. Ele entra pela porta da frente, atira em todos no saguão. Finalmente alguma ação, me regozijo. O prédio parece ser do nosso lado. Reconheço a arquitetura de milhares de prédios iguais àquele. Talvez a segurança interna se organize o mate. Ou venha a polícia. Ou nossas tropas. Ele parece alheio a isso. Toma o elevador, escolhe um andar e sobe. No andar de destino, procura uma porta. Entra. Há vários técnicos com avental branco. Ele mata todos. E, em uma cama hospitalar está alguém deitado, cercado de aparelhos. Ele olha o rosto, como para conferir e prepara-se para atirar.

Finalmente vou experimentar a morte.

Alvaro Domingues
imagem: editada a partir de 
 foto de  domínio público

domingo, maio 12, 2013

Mãe


Madame Monet e criança no jardim - Claude Monet

- O que é "mãe"? - Perguntou a menina ao seu robô de cabeceira
- Na Terra eram as mulheres que geravam as crianças em seus ventres, e os chamavam de "filhos". Aqui isso não foi possível.
- Por quê?
- Você sempre pergunta, não é mesmo? No passado, para salvar uma pequena parte da humanidade, óvulos fecundados foram gerados e congelados e ficaram a cargo de robôs-babás, como eu, à espera de um mundo a ser colonizado. Quando isso acontecesse, então, seriam descongelados e educados até virarem adultos e descerem no planeta.
- Você diz que eu crescerei e me tornarei uma mulher. Então poderei ser mãe, gerar uma criança em meu ventre?
- Sim.
- Isso seria bom?
- Como eu tenho lhe ensinado, tudo tem seu lado bom e ruim.
- Conte-me o lado ruim.
- Você levará nove meses para gerar um filho. Pode sentir cólicas, enjoos e dificuldades de locomoção. Quando seu filho nascer...
- Nascer?
- Sim. Sair de dentro de você. Quando ele nascer, será com dor ou por meio de uma intervenção cirúrgica, que poderá deixar sequelas em seu corpo. Depois que o filho nascer, terá que amamentá-lo, às vezes no meio da noite. E, se ele ficar doente, terá que cuidar dele, às vezes varando a noite em claro.
- Credo! E mesmo assim as mulheres queriam ser mães?
- A maioria que se tornou mãe, de fato queria. Das que não queriam, algumas se sentiam obrigadas a isso e outras não sabiam como evitar.
- Por que alguém iria querer uma coisa dessas?
- Pelo seu lado bom. As mães que desejavam sê-lo, sentiam um prazer enorme em gerar a criança, um ser que crescia pouco a pouco precisando de seu carinho e cuidado. Após ele nascer, elas sentiam-se bem ao cuidar dele e dar-lhe seu amor. A cada dia, se admiravam com seu desenvolvimento e crescimento. Adoravam ensinar-lhes a falar e andar. Acompanhá-los no seu dia a dia, levando-os e buscando-os no que se chamava escola. Educando-os com amor, mas com dureza quando necessário. E, às vezes, a criança lhe devolvia o amor, que a mãe enxergava em dobro ou triplo. E isso era maravilhoso, fazendo-a esquecer das dores e dificuldades.
- Você é minha mãe?
- Não. Sou apenas um arremedo. Cuido de você, lhe educo, dou lhe atenção. Mas não posso lhe dar o amor que uma mãe poderia dar.
- Queria ter tido uma mãe...
- Eu também. Eu também! 

domingo, maio 05, 2013

Antes que o sol se ponha


O Sol já nasceu. Eu posso então sair para as compras. Eu chamo de compras, mas no início as pessoas que acreditavam que um dia ainda viria a ter lei e ordem chamavam de “saque”. Hoje ninguém mais guarda os supermercados. Os sobreviventes são poucos e cada um está preocupado consigo mesmo ou, no máximo, com a sua família. Lutar por provisões não tem mais sentido.
O supermercado hoje não está muito cheio. Mesmo quando a sobrevivência está ameaçada, a maioria não gosta de levantar muito cedo. Eu também confesso que não, mas meu dia, como sempre é muito comprido. Carlos, meu filho mais novo encomendou um livro da biblioteca. Não vou negar-lhe. Hoje já não tem riscos em ir ao centro e ninguém quer saquear livros.
E há ele. As crianças esperam que eu cuide dele. Ainda que ele esteja neste estado, eles ainda o chamam de pai. Sempre foi assim, mesmo antes da Doença.
As compras já terminaram, vou pra casa e guardo com cuidado as mercadorias no armário dou o livro para Carlos. Gravuras, letras e frases. Não quer ficar para trás. Quer poder ler. Mais do que nunca ler é importante pra sobreviver.
Vou agora para a minha missão de todos os dias. Preciso encontrá-lo. Hoje já não é muito difícil. Depois que aprendi que os acometidos da Doença vão se esconder do sol e dos caçadores sempre em lugares que evocam onde se sentiam mais seguros. O último baluarte de sua humanidade.
Não sei por que demorei a perceber. Mesmo o tendo encontrado mais de uma vez em locais similares. Segundo o psicologismo de revistas femininas que um dia perdia tempo em ler, eu estava me escondendo uma verdade que eu não queria enfrentar. Fato.
Encontrei-o como sempre sentado numa mesa de bar. Como sempre. Só que agora durante o dia. E a diferença que não ia levá-lo para casa, quase arrastado. Eu teria que dar um jeito ali mesmo.
Minha filha mais velha, Miriam, havia lavado uma camisa e uma calça para que eu as trocasse. As roupas que ele estava vestindo estavam rasgadas devido aos múltiplos embates com os sobreviventes. A maioria dos sobreviventes estava bem organizada e lutava ferozmente após o anoitecer. Os mais ousados saiam pela manhã para caçar. Um dia isso acabaria. De um jeito ou de outro. Mas o mais provável é que eles vencessem e depois se extinguissem, não tendo mais o que comer. Ou talvez algum abnegado descobrisse a cura.
Mas enquanto isso durasse, ele ainda era meu marido e pai das crianças. Como antes, quando altas horas ele chegava em casa, embriagado. Tirei-lhe os trapos que estava vestindo. Melhor não pensar sobre o sangue em sua camisa. Fiz alguns curativos sobre ferimentos, vários em seu corpo, mesmo sabendo que nunca iriam cicatrizar. Vesti-lhe a roupa limpa. Levei-o até a mesa e coloquei-o sentado. Levantei e sentei alguns outros como ele, colocando-os como se estivessem conversando, tentando dar uma aparência de realidade, mesmo que fosse uma realidade que desejara ver finda.
Tive que deixá-lo, pois o sol se poria dali há algumas horas. Na volta peguei munição para as armas de fogo em casa. Embora me digam que eles não têm sentimentos, em todo este tempo de ataques sistemáticos, nunca vi o pai dos meus filhos entre os que atacavam nossa casa.
Alvaro Domingues
Publicado originalmente  como podecast em PodEspecular